
O Taiji Quan , como Arte que exercita não só o corpo , mas o indivíduo como um todo , oferece esta possibilidade de transformação pessoal , pois é um sistema completo , que oferece tanto uma “ filosofia de vida ” quanto um “modo prático” para vivê-la !
O Taiji , é uma das mais sofisticadas expressões da Cultura Chinesa .E como representação e expressão desta Cultura , ele condensa , naturalmente , seus mais altos valores , materializando , através de um sistema teórico-prático , séculos de tradição filosófica que estão embutidos em cada forma , em cada gesto , em cada postura , em cada exercício , existindo ,portanto , uma relação direta entre tradição cultural chinesa e os fundamentos do Taiji Quan . Esses fundamentos são , justamente , fontes valiosas para a transformação do comportamento .
A fim de aprofundar e compreender a relação entre Cultura Chinesa e Taiji , devemos nos reportar , primeiramente , ao contexto histórico-cultural em que o Taiji Quan foi concebido e estruturado . Ao abordarmos esta questão , devemos ser receptivos e cautelosos , pois trata-se de uma Cultura muito diferente da nossa . A diferença está na maneira de conceber , interpretar o mundo e no próprio “modo de ser chinês” , com seu jeito peculiar de ser , de pensar e relacionar-se com o mundo. Imediatamente podemos perceber que este modo particular de pensar e conceber parece ser de natureza integradora , circular ,espiral , que conjuga ,aprofunda onde a realidade é concebida de forma holográfica .
O Taiji Quan , pertence a este “modo holístico” de conceber as coisas , pois o ser humano é sempre percebido em sua relação com o ambiente , possuindo não apenas uma dimensão física , mas também, energética e espiritual : O corpo , a energia, a mente e o espírito são realidades indissociáveis dentro do paradigma chinês .
O “modo chinês de pensar” e consequentemente todas as atividades desta Cultura , baseiam -se numa espécie de raciocínio associativo que , no Ocidente denominamos por “correspondência sistemática ” : Uma espécie de pensamento por correlação , que estabelece ligações entre fenômenos , acontecimentos , enlaçando Homem e Cosmos .
Esse tipo de raciocínio parece intrínseco a esta Cultura desde seus primórdios pois o pensamento chinês entende que a Ordem Cósmica ( o Céu ) em seu ciclo infinito , estabelece as estações do ano na Terra , que por sua vez , estão relacionadas , naturalmente , à época das chuvas , cultivo , colheita , tendo , também , ampla influência no Homem . Por exemplo , a Medicina Chinesa. estabelece que , para cada estação do ano há um órgão , uma víscera , uma enfermidade , uma cor , um sabor , um clima , uma direção , uma emoção, uma qualidade energética , correspondente ou associada . Essas correlações ou associações não são meramente arbitrárias , ao contrário , são baseadas na observação e também na premissa fundamental de que , no Universo as coisas correspondem-se pelo simples fato de tenderem à harmonia .
Para elucidar melhor este conceito e termos noção do quanto este raciocínio é antigo e “fundador”, vamos no reportar à Dinastia Shang (1750 -1040 a C) , cujos Sacerdotes - que também eram chefes dos clãs – perceberam que havia uma ordem cósmica e que esta interferia no mundo natural da Terra e que também o comportamento humano interagia com estas dimensões . Estas correspondências ou influências mútuas entre Céu , Terra e Homem selaram as bases do Pensamento Chinês .
Ao longo do tempo, consequentemente , a produção cultural foi sendo aperfeiçoada , principalmente através dos Pensadores da Época Han (206 a.C.- 220 d.C) . Estes levaram a “correspondência sistemática” ao apogeu, estabelecendo e atribuindo correlações entre todas as manifestações e áreas de conhecimento – Artes em geral , Medicina , Astrologia , organização sócio-política ... Vale lembrar que este pensamento por correlação , cujo princípio aplica-se a qualquer ocasião, está , em última instância , relacionado à conexão primordial , aquela que fundamenta todas as outras : A tríade Céu - Terra – Homem.
O Taiji Quan é uma Arte que reflete claramente este paradigma integrador, pois cada “movimento” corporal foi concebido para ser , necessariamente um “movimento ” mental que é organizado , orquestrado e animado pelo Qi , pela energia que , por sua vez , compõe e anima todos os processos físicos e psicológicos .
Quando executamos a postura da “garça branca que abre as asas”, por exemplo, ao intencionarmos fazê-la (ato mental) , automática e instantaneamente o corpo movimenta-se, animado pelo qi . O “caminho” contrário também pode ser feito : Ao executarmos a postura , nosso estado mental e energético é alterado , pois a “postura física “ estimula” estados mentais ! Portanto as correlações entre Mente , Corpo e Energia são naturalmente experimentadas e estimuladas dentro da prática do Taiji .
Os Orientais perceberam (justamente por causa de sua visão holográfica ) que posturas físicas inspiram estados emocionais . E que , estados emocionais refletem-se no corpo, através das posturas , da aparência e do modo como o corpo se movimenta.
Wilhelm Reich , médico e psicanalista austríaco , transcendendo os conceitos freudianos de sua época , foi o grande estudioso das relações entre o funcionamento mental e corpo físico , desenvolvendo a noção e a importância do conceito de Qi para a promoção e manutenção da saúde como um todo e , notadamente , a saúde da vida psíquica , no contexto da Psicologia Ocidental .
Essencialmente , pode-se dizer que , a pesquisa reichiana apontou diretamente para o fato de que alterações no funcionamento psíquico repercutem no corpo , gerando distorções , bloqueios musculares e posturais , que em última instância, estão intimamente vinculados ao bloqueio do livre fluxo de Energia Vital ( Qi ) , gerando toda a sorte de doenças .
A partir disso , foi possível , para a Psicologia Ocidental, abordar o Ser Humano através do conceito de “ realidade bioenergética” , bem mais próxima do paradigma oriental , reconhecendo o elo entre Mente , Corpo e Qi .
Embora reconheçamos esta realidade bioenergética e o Taiji como disciplina psicossomática , a “mentalidade ocidental” ainda predomina , provocando uma abordagem dissociada e uma percepção limitada da relação estabelecida entre mente , movimento , postura e como tudo isso repercute diretamente no comportamento , na personalidade e na vida do praticante de Taiji . Por isso , sabemos da importância do estudo sob orientação de um professor qualificado , com visão ampla de todo o processo que se estabelece com a prática .
Temos , com o Taiji Quan , uma oportunidade maravilhosa de estabelecer uma outra visão da vida - um tanto incomum para nossa maneira costumeira de lidar com as coisas . Isso porque as Artes Chinesas nos proporcionam vivências e experiências , ampliando nossas possibilidades para além das verbalizações , análises críticas e abstrações . Essa possibilidade de experimentar e vivenciar, que as Artes Chinesas nos proporcionam, se devem ao fato de que os chineses lidam com suas teorias, paradigmas e premissas básicas de modo bastante objetivo e , portanto , de forma muito prática . Parecendo não haver razão, diferentemente da nossa Cultura , em discutir teorias pelo simples prazer de criar ou exercitar o intelecto , se estas não estiverem relacionadas a uma possibilidade prática e concreta de experiênciá-las !
É preciso poder “vivenciar o que é pensado ”, ter a experiência do que algo significa .
Percebemos , portanto , que o paradigma holístico , discutido anteriormente , vai muito além do estabelecimento de associações ou correspondências sistemáticas em termos teóricos , unicamente . Porque uma “teoria”, vem , necessariamente , acompanhada da possibilidade de ser vivenciada ... É mais importante “saber como fazer ” do que “saber que”, no sentido de apenas conhecer ou entender !
Novamente , será necessário retroceder às origens da Cultura Chinesa para que possamos compreender a gênese desta forma pragmática e objetiva de estruturar e elaborar o conhecimento . Foi na dinastia Han , que a base deste modo especial de agir e pensar foi solidificado .
Logo após a Era do Imperador Qin ( 221- 206 a. C.) , os eruditos Han começaram a fazer uma reflexão sistemática de , praticamente , todas as áreas do Conhecimento , organizando , comentando , ampliando o conteúdo dos Clássicos ( in-clusive do I Ching , que , naquela época recebeu atenção especial ) , elaborando, ao máximo, o tipo de raciocínio por correspondência , sempre baseados na relação entre o fenômeno celeste , o mundo natural na Terra e a sociedade humana .
Neste ínterim , o pensamento de Confúcio ( 551 – 479 a. C. ) foi resgatado , suas idéias começaram a formar um corpo literário , através destes estudiosos que organizaram em textos e em diálogos as citações que lhe eram atribuídas , percebendo o quanto esta forma de pensamento se harmonizava com o contexto que na época se desenhava . Era preciso estabelecer alicerces que pudessem oferecer àquela cultura um forte senso de identidade . Surge , então , o Confucionismo marcando , para sempre, a mentalidade chinesa . Este objetivo foi atingido , pois até hoje , os chineses intitulam-se- “Filhos de Han”.
Continuando a tradição de pensamento que lhe precedia , Confúcio , procurou, durante sua vida , um modo de harmonizar o indívíduo à sociedade , que por sua vez estava submetida à Ordem Celeste .
A relação que conduziria o Homem a esta harmonia deveria ser mediada pelo aprendizado . Para Confúcio , todos podem ser homens superiores , plenos , bastando para isso , disposição genuína para transformar-se e aperfeiçoar-se indefinidamente . Portanto, Confúcio estabeleceu uma relação muito particular , muito especial com o “aprender ”, com o Conhecimento .
Esse “aprender ” não é apenas um processo intelectual , é uma experiência de vida . Não há um fosso entre os dois , entre a vida do espírito e a do corpo , entre teoria e prática . O aprender é uma experiência que se “pratica” . O que conta , o que é mais importante não é tanto o Conhecimento de ordem teórica , mas sim, sua “intenção prática”.O Conhecimento , portanto , consiste mais no desenvolvimento de uma aptidão e não tanto na aquisição de um conteúdo intelectual .
Sua proposta , em última instância , consiste mais na importância de “aprender a viver” pois aprender é “aprender a ser Humano” .
Há , em especial , um pensamento de Confúcio que elucida sua peculiar relação com o aprendizado :
“Aprender alguma coisa para poder vivê-la a todo momento ,
não é isto fonte de grande prazer ? ”
O Confucionismo , sedimentado pela dinastia Han , explica , em grande parte , porque os chineses tem uma relação tão concreta e pragmática com o Conhecimento e com o Pensamento . O pensamento de Confúcio forneceu a estrutura definitiva para esta forma de viver que integra duas realidades: A realidade mental , subjetiva à realidade concreta , objetiva . O Taiji , como produto da Cultura Chinesa , foi afetado diretamente por este modo de pensar e viver .
Por exemplo , quando procuramos responder à pergunta :
“O que é Taiji Quan” , muitas vezes , dizemos: “ É uma Arte Chinesa , ou é “ uma filosofia de vida” ou ainda “é uma prática que exercita Mente , Corpo e Espírito” ... O Taiji Quan é , de fato tudo isso . Porque ele proporciona um praticar que é ao mesmo tempo físico e ao mesmo tempo filosófico ! O Taiji Quan , possui conceitos filosóficos que podem e devem ser vivenciados em termos físicos e energéticos . É preciso praticar para entender sua teoria. Mas também é preciso entender sua teoria e filosofia para poder praticá-lo !
O Taiji nos fornece uma possibilidade singular de transformação de atitude e comportamento . Ao praticarmos , vamos , sutilmente , incorporando seus conceitos filosóficos e transportando esses conceitos para a vida diária , em forma de atitudes e comportamentos , sem , muitas vezes , sequer termos consciência disso. Ao praticamos Taiji temos a oportunidade de ter uma experiência direta do que seja aquietar-se , pois os movimentos e posturas foram projetados para que possamos equilibrar o fluxo energético , através da sincronia , fluidez e padrão circular da movimentação . Naturalmente , através da prática constante , essas modificações vão atingindo nossa personalidade , pelo simples fato de “freqüentarmos” a harmonia e o equilíbrio , que passam a não ser mais um conceito ou ideal a ser alcançado através do “entendimento” e do “esforço ” psicológico .Pois não é preciso “forçar” ou “induzir” a mudança de atitude .
Ela se projeta naturalmente na personalidade e na vida do praticante , simplesmente porque há contato direto com o silêncio , com a beleza, com a harmonia e com a flexibilidade contidas nos movimentos de Taiji Quan .
É muito comum , por exemplo , dependendo , é claro do que é buscado com a prática do Taiji , escutarmos um aluno ou colega dizer que percebeu em si mesmo uma mudança interna ou também uma modificação em seu comportamento , modificação esta até desejada , que ele mesmo não sabe explicar como ocorreu... Bem , podemos deduzir que , justamente por ser o Taiji uma atividade não verbal , e que pertence a uma Cultura diferente da nossa , ela ativa os processos mentais inconscientes , desbloqueando pensamentos e sentimentos estagnados , atingindo diretamente o comportamento e a personalidade .
As pessoas muitas vezes relatam que perceberam em si mesmas um aumento da sensibilidade , uma diferença na maneira de lidar com as situações estressantes , sem que para isso , tivessem que se empenhar em um trabalho psicológico específico ...
O Taiji induz a um estado de maior contato interno e de maior percepção e sensibilidade ao meio e às circunstâncias . Assim o praticante torna-se mais adaptado , reagindo com mais eficácia e menos tensão às situações .
Como o Taiji é uma Arte cujo conceito fundamental é o uso da suavidade e da força interior , ao invés do uso da força bruta , o sujeito tem a oportunidade de realmente entender como a flexibilidade e a força interior podem vencer enormes barreiras , pois tanto o treinamento da forma solo , quanto o da forma em dupla ( Tui Shou ) exigem o exercício constante destes conceitos , que na verdade , se transformam em pura técnica e estratégia aplicadas aos movimentos e à atitude psicológica a fim de gerar equilíbrio e harmonia interior . A sensação de quietude interior , então , naturalmente , repercute e avança para além do treinamento , modificando atitudes , reações , transformando o comportamento e , alterando a vida do sujeito .
A oportunidade de estar em contato com a beleza , com a harmonia , integrando a Mente à Energia e ao Corpo , dissolve , espontaneamente , padrões psicológicos , que, de outra maneira , necessitariam de árduo trabalho psicológico.
Por isso, afirmamos no início do texto que os chineses tem uma relação integrada e muito prática com questões que envolvem a existência , como “vida” , “saúde” , “felicidade”, “convivência”, porque esses aspectos não são apenas conceitos , que servem , meramente , de fonte ou alimento para especulações filosóficas ou pesquisas científicas .
É bom comentar que esta relação direta que há entre Teoria e Prática não destitui o Pensamento Chinês da sofisticação que lhe é peculiar, nem o torna facilmente acessível . Sempre encontraremos dificuldades , sejam elas de ordem teórica ou prática . Compreender o conceito “Taiji” , em termos filosóficos , não é tarefa fácil ...Praticá-lo , integralmente , também não é ! Pois eles estão irremediavelmente interligados.
Este é o aperfeiçoamento da alma que a Cultura Chinesa nos proporciona , através do Taiji , Arte do Silêncio e do Movimento, que requer a construção de um espírito paciente , a fim de penetrar num universo tão radicalmente diferente do nosso...
Referências Bibliográficas :
História do Pensamento Chinês – Anne Cheng – Ed . Vozes , 2008
China – Uma Nova História - John Fairbank / Merle Goldman , Ed. L&PM , 2007
O Pensamento Chinês - Marcel Granet , Ed. Contraponto ,1997
O I Ching , O Livro do Yin e Yang – Cyrille Javary , Ed. Pensamento ,1989
Os Analectos – Confúcio , Ed L&PM , 2006